segunda-feira, 1 de junho de 2009




Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de Abril de 1821 — Paris, 31 de Agosto de 1867)

Em 1857 é lançado As flores do mal ,contendo 100 poemas. O livro é acusado, no mesmo ano, pelo poder público, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são presos, o escritor paga 300 francos e a editora 100, de multa.

Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreveu seis novos poemas "mais belos que os suprimidos", segundo ele.

Quadros Parisienses

IV - O Cisne

(A Victor Hugo)

I

Andrômaca, só penso em ti! O curso de água,

Espelho pobre e triste onde já resplandeceu,

De teu rosto de viúva a majestosa mágoa,

O Simoente falaz que ao teu pranto cresceu,

Rápido fecundou minha fértil saudade,

Como eu atravessasse o novo Carrossel.

Morto é o velho Paris (a forma da cidade

Muda bem mais que o coração de uma infiel);

Em espírito vejo os campos de barracas,
Os fustes aos montões, as cornijas rachadas,

Os muros de um verniz verde, as ervas opacas,

O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas.

Ali antigamente havia um aviário;

Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão

Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário

Manda ao ar silencioso obscuro furacão,

Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas

Dos seus pés atritando o pavimento iníquo,

Arrastava no chão as grandes plumas calmas.

Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico,

Suas asas no pó banhava, num desmaio,
E dizia a sonhar com seu lago natal:
"Água, não choverás? Não trovejarás, raio?"

Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,

Às vezes fitando o céu, como o homem ovidiano,

Para o céu de um azul cruel e tão irônico,

Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano,

Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!

II

Paris mudou! porém minha melancolia

É sempre igual: torrões, andaimarias, blocos,

Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,

Minhas lembranças são mais pesadas que socos.

Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz,

Exilado que ele é, ridículo e sublime.

Roído de um desejo infindo! como em vós,

Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo,

Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno,

Junto a tumba vazia, em languor doloroso

Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno!

Vou pensando na negra, a tísica e a doente;

Busca de pés na lama e de olhar tão bravio

De sua África nobre o coqueiral ausente

Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio;

Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba
Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor,

Onde soem mamar, como de boa loba,

Nos órfãos a mirrar mais secos do que a flor!

E na floresta, que meu pobre corpo trilha,

Soa como buzina uma velha lembrança.

Penso no marinheiro esquecido numa ilha...

Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!






V - Os Sete Velhos

(A Victor Hugo)

Cidade formigante, e que ao sonho se aviva,

Em que o fantasma ao sol se agarra ao pescoço!

O mistério por tu é seiva que deriva

Nos estreitos canais do potente colosso.

No entanto, uma manhã em que na rua feia

As casas, a que a névoa emprestava brancor,

Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,

E em que, decoração como a da alma do ator,

Suja e amarela bruma enchia todo o espaço,

Eu ia, os nervos meus com heróicas tensões,

E discutindo com meu espírito lasso,

Pela viela a vibrar dos graves carroções.

De repente um ancião cujas pobres sacolas

Imitavam a cor de um céu a tempestar,

A cujo aspecto só choveriam esmolas,

Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar,
Surgiu tendo no fel as pupilas molhadas;

Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas,

A sua barba imensa, esguia como espadas,

Projetava-se assim como a barba de Judas.

Não era curvo mas quebrado, a sua espinha

Dava com sua perna exato ângulo reto,

Tanto que o seu bastão, que o seu cariz sublinha,

Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto

De um mórbido muar, de um judeu de três patas.

Metia os membros seus na nevada e no lodo,

Como quem está a pisar mortos com as sapatas,

Lançando ao universo o arreganho do apodo.
Vinha outro: barba, olhar, costas, bastão, molambos,

Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos,

Centenários os dois, visões barrocas ambos,

Iam com passo igual a misteriosos mundos.

Tinha eu diante do olhar um enredo poluto,

Ou era a humilhação de um acaso perverso?

Sete vezes contei, de minuto em minuto,

A multiplicação de velho tão diverso.

Aquele que se ri dessa minha inquietude,

Que não se vê prender de um frêmito fraterno,

Pense bem que, apesar desta decrepitude,

Estes monstros fatais tinham um ar eterno!
Teria posto o olhar num oitavo avantesma,

Sem morrer, a este sósia, irônico e fatal,

Fênix tremenda, mão e filha de si mesma?

- Mas as costas voltei ao cortejo infernal.

Bêbado que vê dois, assim exasperado,

Voltei, fechei a porta e de susto transido,

Frio e enfermo, febril o espírito turbado,

Pelo mistério e pelo absurdo malferido!

Minha razão embalde ansiou suster-se à barra;

A borrasca anulou meu empenho ao jogar,

E minha alma dançava assim como gabarra

Sem mastros, por monstruoso e por infindo mar.